segunda-feira, 31 de agosto de 2009

GRANDES VULTOS – HERÓIS DA PÁTRIA.

II Guerra Mundial

Brava gente brasileira

Ex-combatentes da FEB contam histórias de terror vividas nos campos da Itália e prisões alemãs e lamentam, 70 anos depois do começo da guerra, a falta de reconhecimento para a sua luta

Gustavo Werneck

Os olhos que já viram guerra e paz também podem passar da alegria às lágrimas na velocidade de uma metralhadora. Assim tem sido a vida de Amynthas Pires de Carvalho, de 89 anos, natural de Nova Lima, na Grande BH, que, aos 24, embarcou para a Itália naquele distante, mas tristemente inesquecível, 1º de julho de 1944. Dono de memória prodigiosa, ele guarda, ainda bem quentes, as tenebrosas lembranças dos seis meses em que ficou prisioneiro, em Munique, do Exército alemão. Nessa cidade, comeu o legítimo pão que o diabo nazista amassou. Na ração diária distribuída aos presos, recebia seis batatinhas cozidas com a casca, chucrute e um pedaço de pão preto.

Felizmente, ressalva Amynthas, não houve torturas. “Como os brasileiros integravam o 4º Corpo do 5º Exército dos Estados Unidos, os alemães respeitavam e não mexiam muito comigo.” Mesmo assim, ninguém podia vacilar. “Todo o campo em que eu estava era cercado de arame farpado eletrificado, tinha muitos cachorros, guardas 20cm maiores do que nós, torres de controle, Deus me livre de fugir…” Tomar banho era uma tragédia. Numa daquelas madrugadas geladas, o mineiro estava todo ensaboado, sob o chuveiro, quando foi obrigado a sair correndo, já que, às 5h, os nazistas faziam o seu disparo habitual, atirando na direção do acampamento e salve-se quem puder. O resultado foi ficar até o dia seguinte com o sabão no corpo. Nesses meses, o soldado aprendeu frases inteiras do idioma inimigo, e, de brincadeira, dispara algumas como se estivesse no front.

Do conflito mundial, ficou uma única lição: “A de que a gente deve valorizar mais a vida. A guerra não serve para nada, é algo terrível. Todo mundo sofre. Lembro-me muito bem das crianças, durante os combates na Itália, nos oferecendo as suas irmãs em troca de comida”, conta Amynthas. Depois do entusiasmo para relatar suas batalhas, o atual 3º sargento reformado chora convulsivamente. “O Brasil se esqueceu dos pracinhas. Tive que lutar muito, pedir mais ainda, para conseguir essa promoção, que demorou décadas para chegar”, critica.

Conquistas

O país, via Força Expedicionária Brasileira (FEB), mandou para o teatro de operações da Itália 25.334 combatentes. Em sua arrancada para a vitória, os pracinhas conquistaram com destaque, entre outras, as cidades de Monte Castelo e Montese, sendo que, em Collecchio e Fornovo, cercaram e aprisionaram a 148ª Divisão de Infantaria Alemã.

Na sede da Associação Nacional dos Veteranos da FEB (Anvfeb), em Belo Horizonte, onde há um bem-montado museu, que fica aberto de segunda a sexta-feira, das 13h às 17h, Amynthas se encontra com amigos velhos de guerra. Eles reveem os retratos antigos e as pinturas de batalhas, conferem as metralhadoras, contam casos e desfiam queixas. “É triste ver que apenas três presidentes brasileiros visitaram o Cemitério Votivo, em Pistoia, onde os brasileiros foram enterrados. Lula já foi à Itália duas vezes e preferiu se encontrar com jogador de futebol a pôr os pés lá, numa total desconsideração com a memória brasileira”, critica o capitão reformado Divaldo Medrado, que, aos 22 anos, era 3º sargento e comandante de um grupo de combate.

O capitão Medrado também sofreu na pele os horrores do conflito. E mantém as marcas. Em 12 de dezembro de 1944, ele levou 13 tiros de uma metralhadora alemã MG.42, a temida “Lurdinha”, apelido em homenagem à máquina de costura da irmã de um soldado e que tinha “um matraquear” idêntico ao da arma. “Apenas dois tiros entraram no meu ombro e tive que voltar de imediato ao Brasil.” Natural de Ibirité, Geraldo Campos Taitson, de 88, embarcou aos 21 como integrante da 3ª Companhia do 11º Regimento de Infantaria de São João del-Rei. O seu “batismo de fogo” se deu em 29 de novembro de 1944, no primeiro e mal-sucedido ataque brasileiro à cidade de Monte Castelo. “Só conseguimos a vitória no quarto ataque, em 21 de fevereiro de 1945. Guerra só traz desgraça”, resume.

A cobra fumou

Mas sempre há lugar para a camaradagem entre os amigos e recordações que enchem o coração de patriotismo e de conquistas, a exemplo dos dois lemas criados para levantar o moral da tropa. O primeiro deles é “a cobra fumou”, que, atualmente, significaria “o bicho pegou”. Naqueles tempos, explica Medrado, ninguém acreditava que o Brasil iria à guerra, “era tão impossível quanto uma cobra, que odeia fumaça de cigarro e cheiro de nicotina, dar um trago”. Mas ocorreu exatamente o contrário, orgulha-se. Já “senta a pua” era próprio da Força Aérea Brasileira (FAB) e fazia referência ao ataque direto e decisivo ao inimigo, como se a ponta do avião de combate, durante um voo rasante, girasse em parafuso para lançar bombas. Histórias dos pracinhas e dados sobre a campanha brasileira estão disponíveis no site www.anvfeb.com.br, criado pelo vice-presidente da Anvfeb, Roberto Rodrigues Graciani, em homenagem ao seu pai, Raul Graciani (1918-2000), da bateria de comando da artilharia divisionária/FEB, e a todos os veteranos.

Retrato de três heróis

Mineiros, jovens, cheios de sonhos e de vida. Mas veio a guerra e os levou para bem longe da terra natal, para o outro lado do Oceano Atlântico, a Itália, onde tiveram que enfrentar os alemães e seus canhões, as noites geladas e a brutalidade do front. Quando o mundo lembra os 70 anos do início da Segunda Guerra, vale a pena conhecer mais sobre essa história e reverenciar o ato de bravura de três soldados. Geraldo Baêta da Cruz, 28 anos, natural de Entre Rios de Minas, Arlindo Lúcio da Silva, de 25, de São João del-Rei, na Região dos Campos das Vertentes, e Geraldo Rodrigues de Souza, de 26, de Rio Preto, na Zona da Mata, morreram como heróis na cidade italiana de Montese, onde ocorreu uma das mais sangrentas batalhas do conflito mundial com a participação da FEB.

De acordo com os registros, os três pracinhas integravam uma patrulha, quando se viram frente a frente com uma companhia alemã composta de 100 homens. Era 14 de abril de 1945. Eles receberam ordens para se render, mas continuaram em combate até serem metralhados – o detalhe é que, em vez da vala comum, mereceram as honras especiais do Exército alemão. Admirado com a coragem e resistência do trio, o comandante nazista mandou enterrá-los e colocar, sobre a cova, uma cruz e placa com a inscrição: Drei Brasilianische Helden ou “três heróis brasileiros”. Terminada a guerra, seus restos mortais foram trasladados para o Cemitério de Pistoia, na Itália, e depois para o Monumento aos Pracinhas, no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro (RJ). Mereceram as condecorações Medalha de Campanha (participação na guerra), de Sangue do Brasil (quando há ferimento) e Cruz de Combate (feitos de destaque).

No coração de familiares e amigos ainda está a marca do dia da convocação dos jovens para a guerra e, depois, no caso dos três mineiros, do trágico comunicado sobre a morte. “Foi horrível e doloroso para todos nós. No mês seguinte à partida de Geraldo Baêta, minha mãe sofreu um derrame cerebral e morreu. Uma vizinha ouviu no rádio que o navio em que ele estava fora a pique. Só que a mulher confundira tudo, era mentira, o meu irmão prosseguia viagem”, conta Natanaela Baêta Morais, de 84 anos, casada, moradora do Bairro de Lourdes, em Belo Horizonte. Numa caixa, ela guarda todas as cartas e medalhas conquistadas nos campos da Itália.

Enquanto abraça a foto do irmão, “que era arrimo da família de 10 filhos”, Natanaela conta que Geraldo Baêta nunca ficou sabendo que a mãe morrera tão rapidamente: “Achamos melhor não falar nada”. As cartas não paravam de chegar e, numa delas, o pracinha fez uma brincadeira com a mãe, dona Sinhá, dizendo que arrancaria e traria o bigode de Hitler para ela escovar o sapato. “Foram meses muito tristes, nossa família se reunia para chorar”, recorda-se Natanaela, certa de que os jovens precisam conhecer esses episódios para valorizar mais a participação dos brasileiros no conflito mundial.

Fonte: Resenha C Com S Ex (29 Ago 2009) – Correio Brasiliense.

Nenhum comentário:

Postar um comentário