sábado, 12 de dezembro de 2009

PARA REFLEXÃO - BONSTEMPOS.

Recebi de um amigo, por ser interessante repasso para vocês.


Natal Cearense.

Corria o ano de 1941, tempo de guerra, era dezembro. Murillo, então com dezessete anos, era aluno da EPC (Escola Preparatória de Cadetes) do Ceará e estava distante da família que vivia no Rio de Janeiro. Como tantos outros jovens estava ali para tentar ingressar na AMAN e seguir a promissora carreira de oficial do exército nacional, na época uma das melhores opções de vida para brasileiros varões.


Vivia solitariamente e não tinha amigos fora da escola-caserna nem parentes. O dinheiro era curto e só permitia algum sorvete na praça ou uma seção de cinema domingueira. Exceto esse pequeno luxo burguês a vida se resumia a estudo e ordem-unida.


No dia de natal foi passear na Praça Ferreira para passar o tempo. Não tinha como falar com os parentes, naquele tempo um telefonema custaria mais do que tinha para se sustentar num mês e, provavelmente, teria espera de muitas horas no posto telefônico. Seu dia de natal seria vazio de amigos, exceto pelos companheiros de farda.


Estava idilicamente sentado num banco, curtindo as saudades de casa, sonhando com o almoço da família, quando um indivíduo se aproximou e o cumprimentou polidamente, identificando-se.
- "Meu nome é Raimundo, cidadão, como se chama."
- "Murillo, muito prazer em conhecê-lo."
- "Cidadão, o senhor não é daqui, não é mesmo?"


Em fortaleza as pessoas se tratavam assim, chamando uns aos outros cidadãos. Acho que ainda tem disso hoje.
- "Sou do Rio."
- "Quase todos os alunos da EPC são do Rio. Tem parentes aqui no Ceará?"
- "Não, minha família é toda de lá."
- "E amigos?"
- "Só os da escola."
- "E onde vai almoçar hoje, que é dia de natal?"
- "No rancho da escola."


O cidadão nordestino fez pose.
- "Pois não vai comer no rancho, hoje é dia de natal e minha casa vai ser a sua, minha família vai ser sua também. Eu lhe convido a almoçar conosco."


Eram outros tempos, as pessoas eram mais abertas, confiava-se mais no homem. Hoje eu duvido que alguém fizesse uma oferta dessas sem que o convidado, no mínimo, pensasse que o velho fosse uma bicha à cata de parceiro, ou uma trampa para assaltar o gajo. Mas o convite suscitou surpresa e emoção naquele dia em que se sentia tão só e um pouco deprimido; participar de uma reunião familiar seria muito bom, e a fama do povo cearense ser generoso e hospitaleiro se confirmava. Era irrecusável.


Teve a sensação que a família já sabia da sua chegada (e não havia celulares!), pois as filhas do seu Raimundo estavam todas arrumadas com roupa domingueira, o almoço estava a caminho e a mesa posta com lugares para todos, inclusive o convidado.


As moças foram apresentadas e a conversa rolou animada, cada uma delas mostrando suas prendas. O jovem era muito ingênuo na época e não se apercebeu do investimento que a família fazia naquele convite; um futuro oficial do exército era muito mais do que uma menina arataca, naqueles tempos de vida mirrada, podia esperar para a sua provavelmente mísera existência. Um casamento com milico seria um bilhete premiado na mega-sena de hoje. Seu Raimundo tinha estratégia, planejamento de longo prazo, havia até comprado um presente que coubesse em qualquer um daqueles tantos jovens que estariam perambulando fardados pela praça. A escolha do 'felizardo' fora feita pela avaliação da aparência do eleito.


Comeram carne de bode, beberam cerveja e conversaram muito, todos centrados no convidado, Murillo nunca se sentira tão paparicado
na vida.


Mas tinha hora para voltar, deveria cruzar o sentinela da EPC antes das seis da tarde, posto que era interno e menor de idade e não tinha permissão de estar ausente durante a noite. Despediu-se da família agradecido e emocionado com o carinho recebido e foi conduzido até o portão onde seu Raimundo lhe fez as últimas perguntas em voz baixa para não ser ouvido pela família, com ares de confidente.
- "Cidadão, você tem algum desafeto aqui no Ceará?"
- "Não, de jeito nenhum."
- "Alguém já lhe faltou com o respeito em nossa cidade?"
- "Não."
- "Pense um pouco, pode falar que está diante de um amigo."
- "Não, seu Raimundo, nunca aconteceu."


Seu Raimundo queria ser confidente, mais do que isso, queria que Murillo pertencesse ao seu clã. Desejava oferecer alguma coisa irrecusável. E o convidado, que se sentia cada vez mais importante, foi surpreendido pela última frase.

- "Aqui quem manda somos nós. Agora você é da família, se alguma pessoa lhe fizer uma desfeita é só falar comigo, que eu mando matar."

No caminho de volta para a escola, agradecido pela gentileza, mas apavorado, ele pensava que tocar numa das meninas do seu Raimundo podia dar em morte.


Nunca voltou para agradecer. Elas que morressem solteiras.


Em tempo: A história é real, Murillo é meu pai.


(Óbvio que não declinarei o nome desse meu amigo.)

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