“O homem costuma se lembrar de Deus e dos soldados, apenas nos momentos de perigo.”
Ditado romano
Abraço fraterno
Castello Brano
Queremos sair aplaudidos / EntrevistaGeneral Enzo Martins Peri
17/01/2011
Enzo Martins Peri
O general comandante do Exército diz que seus soldados nos morros cariocas estão bem treinados para a missão e conta que as ações são filmadas para evitar erros
Com um iPad, o general Enzo Martins Peri, 69 anos, organiza sua agenda e explora os recursos de GPS do aparelho na caminhada dentro e fora do Quartel-General do Exército, em Brasília. Ele assumiu o cargo máximo na corporação há quatro anos, quando encerrou sua missão de chefe do Departamento de Engenharia e Construção, que apoiou a tropa brasileira a serviço da ONU no Haiti. Sua atenção agora está centrada em sua terra natal, o Rio de Janeiro, onde soldados do Exército ajudaram na tomada das fortalezas urbanas do crime organizado e passaram a apoiar a polícia carioca na manutenção da ordem no Complexo do Alemão e da Penha. A ação acaba de entrar na fase em que a exposição dos militares aumenta muito. Eles estão autorizados a patrulhar as ruas, revistar pessoas e prender infratores em flagrante. O general falou a VEJA.
O fato de a presidente ter pertencido a organizações terroristas na juventude toma penoso à tropa prestar continência a ela?
Isso não muda nada. A presidente Dilma Rousseff foi eleita pelo povo de maneira legítima. Como previsto no ordenamento jurídico do país, é ela quem exerce o comando supremo das Forças Armadas. É a Dilma que prestamos continência.
Na Argentina, no Chile e no Uruguai, militares de altas patentes estão sendo julgados por crimes cometidos durante as ditaduras. Qual é a sua opinião sobre as tentativas de reabrir essa questão no Brasil?
O Supremo Tribunal Federal, que é a instância maior, já definiu essa questão. (Em abril de 2010, por 7 votos a 2, o STF decidiu-se pela improcedência de uma ação apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil que questionava a validade da Lei de Anistia, de agosto de 1979, para os militares que come/eram crimes na repressão política.)
Em março de 1964, o senhor acabara de sair da academia e servia como segundo-tenente em uma unidade de engenharia. O Exército mudou muito desde seu tempo de jovem oficial?
A instituição sempre cultivou os mesmos valores, que são, principalmente, o respeito à hierarquia, à disciplina e o amor à pátria.
Atualmente a preocupação com os direitos humanos é maior do que foi no passado?
Sempre respeitamos os direitos humanos. Essa é uma característica natural do Exército.
Os exércitos são treinados para matar. Como se muda a cabeça dos soldados quando a missão é de natureza policial, como ocorre agora no Rio de Janeiro?
Os soldados selecionados para aquela missão receberam lições específicas sobre como enfrentar esses desafios novos. Eles passaram por um curso semelhante ao que é dado aos voluntários antes de seguirem para o Haiti, no Centro Conjunto de Operações de paz do Brasil, o Ccopab, subordinado ao Ministério da Defesa.
Lá aprenderam quais são as atitudes recomendadas nas diversas situações críticas que podem encontrar nas missões de policiamento. A maioria dos soldados conhece bem a realidade daquelas áreas, pois mora em comunidades pobres e sabe como é a vida ali. Estamos certos de que o treinamento especial os deixa plenamente capacitados para distinguir entre o que deve ser feito e o que deve ser evitado. São experientes. Todos os que participam das ações no Complexo do Alemão e da Penha têm pelo menos três anos de Exército. Não há recrutas entre eles.
Ainda assim, é alto o risco de algum deles cometer erros?
Os militares sabem que devem seguir rigorosamente as regras de engajamento. São normas precisas de conduta, impressas em um documento de nove páginas, que estabelecem como devem se portar em cada caso. Entre os preceitos que foram aprovados pelo ministro da Defesa e pelo governador, está o de que os soldados devem usar preferencialmente força mínima. Isso significa que um militar não pode correr o risco de ser surpreendido e atirar no susto. Ele só pode acionar a arma em momentos muito bem definidos.
Que momentos são esses?
Quando o militar é ameaçado por alguém com uma faca na mão ou tem uma pistola apontada para seu corpo, ele pode atirar. Também pode disparar em alguém que tenta lançar um coquetel molotov contra sua posição, para neutralizá-lo, ou em um veículo que ostensivamente fure uma barreira.
Um dos mais graves episódios envolvendo militares no papel de polícia contra as drogas no México ocorreu quando carros furaram uma barreira. Desconheço as circunstâncias do episódio mexicano. Nós sabemos que esse tipo de coisa rende a ocorrer quando se fazem bloqueios de pista em lugares fora da área de conflito conhecida pela população. A situação no Alemão e na Penha é bem diferente. Colocamos avisos, e todo mundo sabe que o Exército e a polícia estão naquela região, fazendo revistas e interrogando as pessoas. Quem não parar quando solicitado não poderá alegar que desconhecia a operação, que estava em pânico ou que pensou se tratar de uma falsa blitz.
Que outras medidas adicionais de segurança foram tomadas em relação às tropas-federais mobilizadas no Rio de Janeiro? Todas as nossas ações são registradas em vídeo. Com os vídeos, nós poderemos identificar pessoas que incitam atitudes contra os agentes de segurança. Caso um civil reclame de uma ação militar, nós teremos um documento para tirar dúvidas e entender as decisões tomadas pela tropa. A ideia de usar vídeos não é nova para nós nesse tipo de ação. Ela é resultado de um longo aprendizado. Posso garantir que o Exército nunca esteve tão bem preparado quanto agora para empreender esse tipo de missão.
O maior perigo, pelo que se viu no México e na Colômbia em situações semelhantes, é a cooptação do militar pelos bandidos. Como afastar esse risco? Para que se evite a contaminação, um soldado nunca pode estar sozinho. A patrulha das ruas é feita sempre em grupos de pelo menos oito liderados por um comandante. Isso minimiza o risco de desvios de conduta. Adicionalmente, adotamos o sistema de rodízio das tropas empregadas em determinado lugar. A renovação constante do contingente diminui a possibilidade de um dos nossos se envolver com bandidos.
Antes da tomada do Alemão era comum ver bandidos exibindo técnicas de tiro e combate aprendidas nos quartéis. Eram, principalmente, ex-paraquedistas...
É muito difícil para nós impedir que alguém passe a ter conduta indesejável depois de sair da corporação. Temos um programa especialmente desenhado para tentar coibir esse tipo de situação, que é o Soldado Cidadão. Com esse programa, procuramos abrir novas oportunidades de vida para quem já deu baixa. Mas vale lembrar que não é preciso ter sido soldado para conhecer armamentos e saber como usá-los. Hoje em dia alguém mais interessado pode aprender certas técnicas de combate armado no cinema, nos seriados de televisão e até nas novelas.
O que o mundo quer saber, no fundo, é se as forças de segurança brasileiras vão garantir a realização da Copa do Mundo e da Olimpíada sem balas perdidas nem bandidos aterrorizando os visitantes. Essa é a situação ideal, e estamos em meio a um processo que nos levará até ela. A progressiva instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) reduziu muito o número de delitos, como roubo de carros e de residências. Essa melhora deu aos cariocas uma inédita sensação de segurança. O estado está presente nas ruas. Esse é o reflexo imediato. Quando vou ao Rio de Janeiro nos fins de semana, sinto como são reais os efeitos dessa mudança radical. Tenho um parente cuja empregada mora no Morro do Alemão. Ela está se sentindo segura e rindo de orelha a orelha. Duas lideranças de bairros vizinhos ao Complexo do Alemão e da Penha que ficaram de fora da primeira etapa da missão nos pediram que eles sejam incluídos nas novas fases da operação.
Que novos papéis as Forças Armadas precisam estar prontas para desempenhar? O Brasil é uma potência regional, com tendência a aumentar ainda mais a sua influência no mundo. À medida que a economia se torna mais fone e globalizada, cresce o valor da manutenção da paz. Quando olhamos para uma grande empresa nacional, com negócios em vários países, é natural que queiramos calcular quanto do valor dessa empresa depende da segurança que ela desfruta. Ao fazermos a conta, veremos que a estabilidade tem um valor econômico muito grande. Isso em parte é provido pelas Forças Armadas. Também é preciso ponderar que, ao se tomar uma potência ainda mais expressiva no cenário mundial e ainda mais rica em recursos naturais, o Brasil desperta atenção externa de diversas naturezas. Algumas delas podem ser contrárias aos nossos interesses. É imperativo, portanto, dispor de uma força armada à altura da relevância do país.
Com tropas no Haiti e nas favelas do Rio de Janeiro, o Exército teve diminuída sua capacidade de rechaçar um improbabilíssimo ataque externo? Não. No Rio de Janeiro, empregamos apenas cerca de 2000 homens, parte ínfima do nosso efetivo. Entre oficiais, praças, profissionais e recrutas, o Exército tem um total de 190000 homens e mulheres.
O Exército tem boa imagem entre os brasileiros? Em uma enquete recente feita pela Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, as Forças Armadas apareceram em primeiro lugar entre as instituições que mais inspiram confiança. Com 66% de respostas positivas, ganhamos até das grandes empresas e da Igreja Católica, que têm 54%. Quando vou ao Alemão, os meninos me abordam e dizem que querem ser “pqd”, nosso jargão para designar os paraquedistas.
A grande publicidade dada às missões no Haiti e no Rio de Janeiro fez aumentar o número de jovens que querem vestir uniforme? É cedo para termos uma resposta definitiva a isso. Historicamente, é muito maior o número de pessoas querendo servir do que nossa capacidade de absorver a demanda. O serviço militar obrigatório leva cerca de 1,4 milhão de jovens anualmente ao alistamento. Destes, apenas cerca de 5%, ou 70000, são incorporados. É um porcentual muito pequeno.
Se existe uma seleção tão severa, não seria o caso de abolir o serviço militar obrigatório? O alistamento continuará sendo compulsório. Nós estamos buscando meios para conseguir um maior aproveitamento dos que se alistam com a ampliação da capacidade e dos núcleos de preparação de oficiais da reserva.
Qual o cenário ideal para o senhor quando o Exército abandonar os morros do Rio de Janeiro e der lugar às Upps? Nossa maior gratificação é sermos lembrados como pessoas que ajudaram aquelas populações a se livrar de um grande problema. Na ltá1ia somos recordados até hoje nas cidades por onde passou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), na II Guerra Mundial. Eu viajei por lá duas vezes e escutei relatos calorosos de pessoas que ouviram de seus pais histórias enaltecedoras para a FEB. Em Montese, localidade que foi libertada apenas por forças brasileiras, os alunos de uma escola cantam até hoje a música da FEB. Em português. Seria fantástico se produzíssemos no Rio de Janeiro um sentimento semelhante.
Os Estados Unidos mudaram a legislação recentemente para aceitar a presença de homossexuais assumidos nas Forças Armadas. O Brasil seguirá essa linha? Nós não temos homossexuais assumidos, mas não discriminamos as pessoas em razão de sua opção sexual.
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