sábado, 26 de março de 2011

PARA CONHECIMENTO-RECORDAÇÕES DO TEMPO DE CASERNA.

Macho

Clovis Purper Bandeira*

Havia um convênio entre o Serviço Militar e o Juizado de Menores, pelo qual jovens encaminhados pelo Juizado eram recrutados, na esperança de que a vida militar lhes fosse benéfica e preenchesse as lacunas que a falta de uma família tinha causado em sua formação. Apesar de toda a boa vontade, é evidente que a idéia não foi muito bem sucedida, pois o Serviço Militar não tem como substituir a orientação familiar, podendo apenas complementá-la. Alguns casos, no entanto, tiveram razoável sucesso, como o do Macho.

Incorporado ao Exército por indicação judicial, era um rapazote baixo, franzino, nervoso e agressivo, criado em orfanatos e com passagem precoce por reformatório de menores. Em resumo, o que seria hoje chamado de “menor em situação de risco”. Tudo levava a crer que seria um soldado problemático e indisciplinado.

O início de sua vida militar não foi fácil. Os horários, a disciplina, o convívio forçado com outros jovens de diversas origens e formações, tudo constituiu mudança muito brusca em sua vida sem regras e freios.

Acredito que foi salvo por duas pessoas: o Soldado Dietrich e o Sargento Prates. O Soldado Dietrich era conhecido pelo apelido de Pata-Pata, pelo balanço do corpo e pelos movimentos de cabeça que fazia ao caminhar, parecendo estar dançando música muito popular na época. Tratava-se de um jovem muito alto e forte, lenhador da serra gaúcha, do município de Rolante. Tímido, educado, religioso, dócil, era o oposto completo do Macho. Por um desses caprichos da sorte, tornou-se amigo inseparável do baixinho enfezado, que a tudo reagia desafiando para a briga e dizendo: “Eu sou é macho!”.

Daí, seu apelido.

Pata-Pata defendia Macho, ajudava-o em tudo, embora no início da relação abusasse de sua força física, levantando-o pela parte de trás da gola da camisa e deixando-o esperneando no ar. No entanto, quando o fortão sofria e bufava nas sessões de corrida, o fracote tripudiava, fazendo voltas em torno do outro, ou correndo de costas ao seu lado. Assim, ambos aprenderam que cada um tinha relativas vantagens e desvantagens em relação ao outro, e passaram desse conhecimento ao respeito mútuo e à amizade. Com o passar do tempo, Macho foi se adaptando ao quartel e deixou de ser um soldado problemático. Toda a transformação era observada atentamente pelo Sargento Prates, modelar adjunto do pelotão que, em conversas com seu tenente, trocava sua experiência de vida pelos conhecimentos profissionais de seu jovem comandante.

Um dos assuntos recorrentes na conversa era o progresso que Macho fazia na socialização e no comportamento.

Certo dia, o sargento disse ao tenente que ia entrar em férias e visitar os parentes em outra cidade e que, durante seu afastamento, pretendia pedir a Macho que pernoitasse em sua casa vazia, olhando por ela na sua ausência. O tenente tentou demovê-lo da idéia, alertando-o para o risco evidente dessa decisão, pois o rapaz, apesar dos progressos, ainda trazia um passado

cheio de más ações e violência. O sargento argumentou que achava que uma responsabilidade dessa natureza era o que faltava a Macho para conquistar o respeito de todos e, mais importante, o auto-respeito. E assim aconteceu. Todas as noites, e todos os dias nos finais de semana, Macho dirigia-se para a casa do sargento e lá permanecia. Os que sabiam do acordo, temerosos, passavam às vezes pela residência, procurando observar algo anormal, mas nada viam que causasse preocupação. Finalmente o dono da casa retornou. Encontrou-a impecavelmente arrumada, vidros brilhando, grama do pequeno jardim aparada, plantas regadas, gaiolas dos passarinhos limpas. Queria dar um presente ao jovem pelo seu trabalho, mas este não aceitou, dizendo que o maior presente que jamais recebera fora a confiança do sargento.

Recordei-me dessa história, Novo Camarada, para lembrar lhe uma virtude militar das mais características que cultivamos: a camaradagem, aquele sentimento que vai além da amizade, que beira a fraternidade. Foi a camaradagem de seus companheiros de farda, o Soldado Dietrich e o Sargento Prates, que redimiu Macho, coroando seu processo de crescimento e ajustamento social. Quando deixou o quartel, ao fim de seu período de serviço, Macho era outra pessoa, muito melhor do que a que incorporou no velho batalhão.

*O autor é Gen Div e 1ºVice Presidente do Clube Militar

(Transcrito da Revista do Clube Militar nº 439 de Jan 2011)

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